terça-feira, 30 de agosto de 2011

‘Remédios’ do politicamente correto

Carta sobre a entrevista com a autora do livro "Segredo Segredíssimo", Odívia Barros, realizada pela revista Muito. Claro que não publicaram a minha opinião:

Sinceramente, tenho sérias dúvidas sobre o valor pedagógico de algo escrito em 20 minutos e que utiliza o substantivo “brincadeira” (“brincadeiras de adulto”) pra falar de assunto sério. Valor literário, então, nem se comenta. Cabe perguntar: a quem se destina o livrinho “Segredo segredíssimo”? A todas as crianças indistintamente ou somente àquelas que sofrem/sofreram abusos sexuais? Na hipótese, como parece ser o caso, de a história ser voltada para qualquer criança a partir de cinco anos, não pagaríamos um preço por introduzir menores potencialmente impressionáveis no universo da perversão? Essa seria a forma mais eficaz de se combater o problema da pedofilia? Por que a jornalista não fez nenhum desses questionamentos à autora do livro?
É nobre a intenção da Odívia Barros, mas o meio – e a forma – que ela encontrou para se expressar me parecem extremamente discutíveis. No livro, ela fala em “brincadeiras de adulto”, em “cachorrinhos namorando cachorrinhas” e desconsidera o fascínio que o tema pode exercer numa criança, ser curioso e desejante, com natural interesse por “segredos” e “assuntos proibidos”. Será mesmo que a partir do exemplo do “tio depravado” elas se apropriariam do “conhecimento” imaginado pela autora?
Os grandes escritores da literatura infantil sempre trataram de tabus em suas obras, mas nunca de modo escancarado ou leviano. Odívia é muito bem intencionada, mas de boas intenções o inferno está cheio. Na realidade, ela não tem culpa por querer exorcizar seus fantasmas. Culpa temos nós – sociedade, governos e imprensa – por aceitar tão acriticamente os ‘remédios’ do politicamente correto.

sábado, 23 de julho de 2011

Algumas resenhas sobre o romance II

Uma família em claro-escuro - Nílson Galvão (Jornal A Tarde, Caderno 2 - pág. 5, de 11 de junho de 2011)


Com quantas camadas de mesquinharia se retrata uma família infeliz? O baiano Márcio Matos parece ter partido de uma pergunta assim para conceber o seu romance de estréia, A suave anomalia. Com uma paleta de tintas ásperas, traços vigorosos e bom domínio da técnica, o autor se vale do talento de observador de paisagens humanas para compor uma narrativa em claro-escuro, onde a luz, se não deixa de se insinuar, será sempre surpreendida por uma calculada sucessão de elementos de sombra.

E que sombras: a maior, e mais angustiante, é a do patriarca do casarão onde se concentra todo o apelo dramático da história. É como se casarão e patriarca, aliás, fossem a extensão um do outro, seres míticos a destilar veneno para assustar e atarantar a família. Mas há outros espectros a rondar o casarão, nas formas de matriarca, filhos, noras, genros e agregados que, se não atingem o grau de violência psicológica daquele que é descrito ao longo de todo o livro como simplesmente “o avô”, não ficam atrás nas intenções espúrias e nas manobras sórdidas.

O livro só concede as cores da esperança à caçula da família, uma moça que destoa do restante pelo perfil sonhador, por gostar de ler, por se ligar em música pop. Marina e seus arroubos de adolescente extemporânea conferem graça e leveza a muitas passagens de A suave anomalia, numa espécie de contraponto ao peso carregado pelos demais personagens. Mas não é à toa, é bom que se avise, que a moça divide com o pai o protagonismo da trama.

Que se prepare para revelações e situações hardcore, portanto, quem topar essa travessia do casarão tendo como guia a escrita cáustica de Márcio Matos. Ah, sim, e antes que seja tarde: vale lembrar que cenário e personagens cheios de meandros e tortuosos subterfúgios mostram-se ao leitor em meio a escaramuças com pinta de romance policial. É preciso saber, afinal, se as mortes que abalam a trama foram ou não criminosas – e neste último caso descobrir, claro, quem foi que matou, e como, e por quê.

Ao longo da narrativa, o autor conduz com habilidade, mas um certo tom blasé, essa espécie de “who dunnit”, o famoso “quem fez isso” das histórias policiais. Até porque essa questão, em si, não é o que importa. O foco mesmo é observar como as pessoas reagem aos acontecimentos.

Como o filho mais velho, por exemplo, é capaz de se mostrar frio, oportunista e lamentavelmente inepto para conspirar em meio ao luto familiar. E como algumas das cartadas mais ardilosas acabam saindo da cabeça da nora superficial e aparentemente pouco afeita a manipular as pessoas como um exímio jogador de xadrez.

Contemplado pelo edital de apoio à publicação de obras de autores baianos da Secretaria de Cultura do Estado (Secult) e publicado pela editora Casarão do Verbo, o romance de Márcio Matos é antes de tudo uma boa notícia para a cena literária local. Sinal de que tem escritor novo na praça. E que de sua lavra ainda se devem esperar muitas, e quem sabe ainda mais ousadas, dessas suaves anomalias.

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Nilson Galvão é jornalista e poeta (http://nilsonpedro.wordpress.com)


Algumas resenhas sobre o romance I




Márcio Matos propôs-se a revisitar a temática da família em seu primeiro romance A suava anomalia. Chama-nos a atenção a opção do autor pela narrativa romanesca em sua primeira incursão pela literatura, haja vista que o conto é a modalidade narrativa mais praticada pelos autores da nova geração. Todavia, a opção de Matos por um gênero narrativo de maior fôlego mostrou-se acertada e inspirada.


Os segredos e mentiras de uma família em frangalhos são desvelados sem retoques nas páginas de A suave anomalia. O ponto de partida do enredo é o velório do patriarca da família, vítima de um “mal-estar súbito”, cuja intemperança já fora retratada no prólogo do livro. Dona Salu, esposa do “Avô” (o verdadeiro “nome” do patriarca permanece ocultado, o que enfatiza a impessoalidade despertada pela presença paterna), mostra uma atitude estóica diante das ”humilhações, asperezas, maledicências e alegações mesquinhas” perpetrados pelo marido, daquilo que não pode ser mais remediado. As primeiras linhas do texto já sinalizam essa suave dissolução familiar, num belo registro dos instantes de poeticidade que circundam pelo romance:


Havia uma porta entreaberta entre a sala antiqüíssima e o corredor que levava à saída. Um fiapo de luminosidade saía do vão, lume frio, lívido. O facho oblíquo da luz atravessava a espiral de poeira e as partículas do pó dançavam na fulgura morta. (p. 13)


Posteriormente, os filhos do casal comparecem ao velório do pai, todos, com exceção da caçula Marina, nomeados impessoalmente como “primogênito”, “filho do meio” ou “filha”, em mais uma demonstração dos estilhaços afetivos que perpassam pela narrativa. De todos os presentes, Marina e Neto, um jovem que despachava as “contendas burocráticas do velho” e que alimenta uma paixão por Marina, demonstram um apreço incomum pelo “Avô” que será paulatinamente descortinado nos capítulos do livro, em idas e voltas constantes no tempo para entender ou pelo menos vislumbrar os dissabores e tragédias que cada um, especialmente o “Avô”, Marina e Neto, carrega secretamente, pois os disfarces “há muito, se converteram em substância vital, hábito encarnado” (p. 13).


O conflito também é marcado pelas opções de vida de cada membro da família, a exemplo de Marina, cuja paixão pela literatura e pela música traduzia-se não como fuga, mas como uma defesa, um drible, diante da fastidiosa convivência em família:


Marina estava cansada (das horas, do trabalho, das conversas). Nos últimos livros que lera, andou buscando sensações e conflitos menos clichês. Tardiamente, descobriu-se uma leitora compulsiva. (p. 54)


Marina não queria ouvir a voz de Neto cantarolando música besta. Então, aumentou o volume no miolo do cérebro. Needle in the hay, needle in the hay, needle in the hay[i]. A quentura quase suor umedecia o corpo de leve e irrigava as fantasias. Que assombro, que furor, que impulsos! (p. 78)


O contínuo elenco de autores referenciados (“O amante lia um conto de Joyce: ‘Um caso doloroso.’”, p. 73), além de nomes da música, da pintura (“Sentada na poltrona, Dona Salu continuava a vagar pela fria luminosidade de Caravaggio”, p. 79) e do cinema (“O gauche a dizia uma mistura de Rita Hayworth e Emmanuelle Béart”, p. 141) atestam no romance o poder da arte como o único meio que o homem dispõe para transpor sua prejudicial peculiaridade de apreender somente pela experiência pessoal, a infinita capacidade da arte de estabelecer inúmeras associações e ideias que, na assertiva de Ernest Fischer, transmuta-se como o meio indispensável para “essa união do indivíduo com o todo”.


Afora essas referências, o romance parece assumir um segundo ato quando a morte do “Avô” é posta em xeque e um dos primogênitos levanta a hipótese de assassinato. Temos aí quase uma autêntica narrativa policial, quando uma das noras, Tamisa, empreende uma verdadeira investigação, moldada nas regras do policial clássico que, como nos diz Ricardo Piglia, se afirmam, sobretudo, no fetiche da inteligência pura. No entanto, tal recurso mostra-se apenas como pretexto para perscrutar ainda mais os labirintos familiares, descortinando mais revelações acerca de seus membros. Descobre-se, por exemplo, que Marina e o “Avô” mantiveram uma relação de cunho incestuoso, marcada não só somente pela abjeção, mas por um estranho e devoto sentimento de ternura:


O medo dilatou-se como assombração de infância, um quarto escuro em que nada acontece, mas onde é pior fechar os olhos. Não ter o pai por perto equivalia a sofrer de olhos abertos na claridade (p. 199)


Somando o assassínio cometido por Neto contra o amante de Marina (o gauche, em outra referência literária e drummondiana), o elemento policial é fortemente notado no conteúdo de A suave anomalia, porém, como já mencionado, o procedimento serve para que o autor reforce o aspecto trágico da narrativa; situações assumidamente passionais, cuja preocupação não é solucionar um crime, mas sim discorrer em como ocorreu, e daí extrair outros significados que clarifiquem a dissolução emotiva entre os personagens. O crime, portanto, como metáfora da condição humana.


Valendo-se das inúmeras possibilidades que o gênero romanesco pode oferecer (como afirmou Mayrant Gallo, o romance é o gênero da liberdade no tempo e no espaço), A suave anomalia, de Márcio Matos, a um só tempo reúne drama familiar, narrativa policial e constantes referências a outros meios de expressão artística. Tal liberdade de empregar quaisquer estruturas confere ao romance uma atmosfera híbrida e instigante, em que diversos personagens nos convidam a adentrar num universo de duras verdades.


É importante frisar que o autor não oferece nenhum julgamento quanto à conduta dos personagens, mesmo o “Avô”, figura mais brutal da narrativa, demonstra inesperada humanidade na ocasião em que presta assistência ao jovem Neto no Jóquei clube ou mesmo sua postura diante de Marina, em que a brutalidade nada faz do que apenas esconder sentimentos e palavras não ditas. Eis uma das virtudes do romance: ninguém é completamente bom ou mal para demarcar suas reais intencionalidades.


Com entusiasmo admirável, Márcio Matos demonstra em A suave anomalia que pode conduzir uma narrativa de inúmeros recursos, o que, a princípio, pode intimidar pela dificuldade de lidar com esses mesmos recursos. Se para Julio Cortázar o romance capta uma realidade mais ampla e multiforme, mediante o desenvolvimento de elementos parciais e acumulativos, Matos mostra-se à vontade para operar tais elementos, sem medo ou dissoluções à vista.


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[i] Needle in the bay, composição do finado compositor norte-americano Elliott Smith (1969-2003).

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Thiago Lins da Silva é professor, especialista em Estudos Literários e mestrando em Literatura e Diversidade Cultural pela UEFS. Publicou, em parceria com Georgio Rios e Paulo André, o volume de poemas Só Sobreviventes (Editora Tulle, 2008).



quarta-feira, 11 de maio de 2011

Paranóia ou mistificação?

As pautas sobre literatura andam muito comportadas. Por isso - e também pra animar este moribundo blog - resolvi entrar na polêmica sobre o suposto racismo de Monteiro Lobato. A questão ganhou força em 2010, depois que o Conselho Nacional de Educação viu discriminação racial na obra “Caçadas de Pedrinho”, e ainda hoje incomoda gente como a escritora Ana Maria Gonçalves, autora do romance “Um defeito de cor”.
Numa entrevista recente ao Terra Magazine (http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5122209-EI6581,00-Estudiosos+tentam+limpar+racismo+da+obra+de+Lobato+diz+escritora.html), Gonçalves detonou Lobato e soltou os cachorros contra o que chamou de “umbiguismo em torno dos comentários e das matérias sobre o tema”. Umbiguismo?
Taí o grande problema dos agentes do bem. Eles se consideram tutores autoproclamados da sociedade e suas iniciativas bem-intencionadas visam apenas “melhorar a qualidade de vida” do outro. Na lógica dessa gente, ninguém tem autonomia pra refletir sobre as controvérsias da existência humana. Claro, é muito mais fácil apontar o dedo contra escritores perigosos e racistas do que apostar na formação de indivíduos autônomos e capazes de questionar o mundo e a si mesmo.
Se lesse o que eu acabo de escrever, dona Ana Maria diria que não se pode cobrar postura independente de uma criança em processo de alfabetização. Ok, mas não é bem o caso. Crianças de nove anos, faixa para qual se dirige grande parte da obra de Monteiro Lobato, não são tão dóceis e já possuem seus próprios códigos estéticos e de conduta. Espera-se, além disso, que tenham sido educadas dentro de uma perspectiva mais crítica. Por que diabos, então, estariam tão suscetíveis ao suposto racismo das histórias do escritor?
Há inúmeras outras possibilidades que a ficção de “O sítio do pica-pau amarelo” e cia poderia estimular na gurizada, mas dona Ana está preocupada apenas com as entrelinhas Mister Hyde das obras. Várias gerações leram Lobato, gerações inclusive diretamente engajadas na melhoria dos padrões de civilidade do Brasil, mas dona Ana acha que não vale a pena o Estado bancar a difusão de “livros cheios de preconceitos, com ilustrações horrorosas, pouco atraentes e de difícil compreensão”.
Como se não bastasse tamanha patrulha, a escritora ainda defende a idéia de que, além de julgar o pensamento público (literário) dos escritores, o leitor deve conhecer sua pérfida e mesquinha intimidade. Só assim, talvez, saberá que Kafka era obrigado pelo pai a comer baratas ou que Lewis Carroll não passava de um pedófilo desnaturado.
A mim não interessa que ideólogo ou mau hábito faz a cabeça de um escritor, cineasta, músico ou pintor (Elia Kazan não se tornou um cineasta menor depois que se descobriu sua contribuição para o macarthismo). A obra se impõe, independentemente do espírito do tempo, que muitas vezes deixa marcas na personalidade do artista. Se Lobato possuía pendores racistas, pior pra ele, que talvez tivesse sido um escritor ainda mais sensacional caso não houvesse flertado com teorias tão boçais.

terça-feira, 5 de abril de 2011

O regresso

De volta depois de um longo e tenebroso inverno. Estarei mais presente por aqui de agora em diante. Fiquem com o fastfilm (by Pinaúna Digital) do lançamento de "Além do Espelho", da minha querida Vanessa Brasil.

domingo, 7 de novembro de 2010

Distribuição X Circulação

Não concordo com quase nada do que disse o autor do artigo abaixo, mas acho válido publicá-lo em um blog sobre literatura. Há uma dicotomia que o cara rechaça, mas que me parece mais interessante de problematizar do que essa tal "literatura de esquerda": se a DISTRIBUIÇÃO literária, responsabilidade do rarefeito mercado, opõe-se à CIRCULAÇÃO literária (suposta atribuição da academia), por que ao invés de se debruçar insistentemente sobre os cânones, os acadêmicos não assumem mais radicalmente a função de garimpar e divulgar novos talentos?

O escritor sem público
Folha de São Paulo, caderno Ilustríssima, 07/11/2010

DAMIÁN TABAROVSKY
tradução PAULO WERNECK

Dilemas da literatura café com leite

RESUMO
Em contraponto aos consensos formados em torno do mercado e da academia, que levaram à perda de potência da literatura contemporânea, o autor propõe uma terceira via para a ficção. A "literatura de esquerda" rompe com essas convenções, seguidas até por autores "à esquerda" na política, porém conservadores esteticamente.

UMA VEZ, PERGUNTARAM à poeta argentina Alejandra Pizarnik por que nunca havia escrito um romance. Ela respondeu: "Porque todo romance sempre tem um diálogo assim: "Oi, tudo bem? Quer uma xícara de café com leite?".
É curioso, mas por fim Pizarnik acabou escrevendo narrativa e, além disso, segundo me inteirei mais tarde, a frase é apócrifa. Dá na mesma. Volto à ideia do café com leite: por que é verossímil que Pizarnik tenha dito essa frase?
Será porque encarnava o típico poeta que desconfia da prosa? Seria apenas só uma "boutade"? Expressa, por denegação, sua própria incapacidade para o romance? Será porque simplesmente não gostava de café com leite?

CONCESSÕES Todas as hipóteses são sólidas, seria preciso levá-las em conta na hora de decifrar o enigma. Eu gostaria, entretanto, de avançar outra possibilidade. Talvez essa frase informe sobre certo estado do romance contemporâneo: a época em que a prosa começa a fazer concessões à linguagem, o tempo em que o romance faz da concessão sua norma.
Ao mesmo tempo contemporânea tardia do "nouveau roman" e do descobrimento de Witold Gombrowicz (1904-69) na Europa ocidental, Pizarnik é, antes de tudo, testemunha do surrealismo do pós-Guerra -de sua conversão em múmia-, do realismo mágico e do sucesso de Cortázar. Ou seja, o momento em que a vanguarda se cristaliza, se converte em literatura banal, o momento de sua divulgação linguística, da perda de sua potência expressiva. O momento em que a literatura deixa de se expressar como dúvida e se escreve como certeza.
Esse estado de mediocridade expressiva da narrativa, que nos anos 60 horrorizava Pizarnik, hoje adquire um caráter não apenas literário, mas cultural. O que deixa Pizarnik horrorizada poderia ser definido sob o rótulo de política literária: o café com leite como verdade última da narrativa.

COURAÇA CULTURAL Mas, por fora da literatura, em outro lugar, existia um estado da cultura que dissimulava esse fracasso literário. O que acontecia talvez tivesse a ver com isto: a primazia da cultura sobre a literatura. Se hoje lemos muitos dos romances daquela época, se os lemos desprovidos da couraça cultural que os protegia, o que sobra?
Tão somente o vazio e a nostalgia daquela couraça.
No entanto, o desaparecimento dos anos 60 não implicou nenhuma revisão literária, nenhuma mudança profunda nos rumos centrais da narrativa. Somos testemunhas, hoje, da mesma política literária do café com leite, agravada pela ausência do clima cultural de então.
Se nos anos 60 a cultura predominava com tanta facilidade sobre a literatura, não era por sua riqueza, mas pelo sabor pasteurizado a que havia chegado a narrativa. Se hoje cultura e literatura se equilibram em sua intranscendência, é porque a pasteurização abarca a ambas.

ACADEMIA E MERCADO Dou um salto no percurso que vai dos anos 60 até hoje. Meu interesse é assinalar alguns aspectos da situação da literatura em nosso tempo. Aquilo que a sociologia denomina "campo cultural" ou "campo literário" está quebrado, partido, atravessado por dois polos de atração: a academia e o mercado.
Claro que esses dois polos não são necessariamente antagônicos (são conhecidos os homens e mulheres que circulam com êxito pelos dois mundos: de manhã, catedráticos, à tarde, articulistas "todo terreno", à noite, ganhadores de concursos; como uma espécie de citação cruel da utopia marxista do "pela manhã, carpinteiro, à tarde, pescador"), mas, se são dois espaços identificáveis, cada um com sua marca, com seus públicos, códigos, valores; dois lugares no estado de tensão, desatenção e fascínio mútuo.
Mas, antes de avançar, é preciso reconhecer duas ou três questões: nem o mercado nem a academia são âmbitos homogêneos; cada um deles está constituído por desacordos internos, estilos divergentes, "targets" específicos e paradigmas contraditórios.
Segundo: no estado atual do capitalismo, de uma maneira ou de outra, todos temos, tivemos ou teremos algum tipo de relação com o mercado (e também com a academia, uma vez que a circulação entre os dois espaços é tão intensa). Do ponto de vista pragmático, a partir do realmente existente, no momento em que um escritor publica (ainda que uma plaquete de 10 exemplares, ou a tradução de um poema para distribuir entre amigos), está operando no mercado. Dito e reconhecido.

A SALVO Mas o que me interessa é outra coisa, algo além do que o realmente existente, um enfoque que torne visível o invisível. Como defini-los? O mercado e a academia: dois espaços a salvo.
Não importa se o mercado literário argentino é pequeno em comparação ao de outras sociedades, nem se a academia vernácula não passa de uma ilusão; o importante é que a maior parte da literatura e da crítica que se publicam há 25 anos foi escrita a partir desses lugares.
Houve, desde então, uma vontade cultural tão forte para que realmente se instituísse um mercado literário e para que se consolidasse um âmbito acadêmico, que o realmente significativo não é se, por fim, tal vontade chegou a se concretizar, mas que o central foi essa política, a própria existência dessa vontade capitalista de ter um mercado funcionando e uma academia investigando.
Seguindo de perto o discurso dos atores pertencentes a cada um desses polos, nota-se um alto grau de desconfiança e ironia pelo outro (os autores da academia que passam para o mercado mantêm um clássico discurso antimercantil, desmentido pela falsa inocência de suas próprias obras; ao mesmo tempo, nossos best-sellers mantêm um constante chororô sobre a indiferença da crítica, que não reconhece seu talento).
Mas, se pensamos na cena a partir de outra perspectiva (ou seja, simplesmente pensando), é muito simples ver como ambos os polos estão ligados, não só pela circulação de figuras, mas, sobretudo, pela relação que os dois lugares mantêm com a literatura, pela ideia trivial que cada polo tem da escrita. O mercado e a academia escrevem a favor da reprodução da ordem, de sua sobrevivência, a favor de suas convenções.

NOVO É claro que, no capitalismo tardio, tanto o mercado como a academia precisam da novidade para se reciclarem (o caráter outrora radical do novo se converteu em mero valor de troca -no mercado- ou em simples valor de uso, na academia). Portanto, escrever a favor da manutenção da ordem, do consenso, não exclui o gosto pelo novo.
Depois de quase 150 anos de existência de tradição do novo, o mercado liquidou o assunto entendendo o novo tão somente como o último, o jovem, a mercadoria mais recente, esvaziando essa tradição de densidade e perspectiva. A academia, consciente de que a mudança e o novo já não passam de uma tradição, resolveu a questão historicizando o problema, incorporando-o a uma galeria de relativismos teóricos e culturais sem dúvida pertinentes, mas que exclui o que ainda sobrevive -como problema que incomoda- da tradição do novo: o desejo louco de mudança.
Como se a crítica e a narrativa acadêmica dissessem: "Já que eu sei que a mudança e a ruptura não passam de uma tradição entre outras, não busco seu efeito de novidade, porque sei que ele não existe, e então me conformo com o que há, com o realmente existente".

DESEJO LOUCO De fato, a mudança, a ruptura e a novidade, hoje, parecem não existir realmente. Mas sobrevivem como desejo, como pulsão. A sobrevivência do desejo louco pelo novo produz efeitos de escrita -romances e poemas reais- que nem a academia nem o mercado conseguem assimilar.
Enquanto o mercado e a academia escrevem a favor de suas convenções, a literatura que me interessa -a "literatura de esquerda"- suspeita de todas as convenções, inclusive as suas próprias. Não busca inaugurar um novo paradigma, mas pôr em questão a própria ideia de paradigma, a própria ideia de uma ordem literária, seja ela qual for. É uma literatura que se escreve sempre pensando no lado de fora, mas um lado de fora que não é real: esse fora não é o público, a crítica, a circulação, a posteridade, a tese de doutorado, a sociologia da recepção, a contracapa, os parabéns.

LINGUAGEM Esse lado de fora também não é a tradição, a angústia das influências, outros livros. Não. Esse lado de fora convencional, que está vedado para a literatura de esquerda, porque a literatura de esquerda é escrita pelo escritor que não escreve para ninguém, em nome de ninguém, sem outra rede além do desejo louco de novidade. Essa literatura não se dirige ao público: dirige-se à linguagem.
Não se trata da oposição de romances "de trama" vs. romances "de linguagem" -que é como dizer: a oposição de mercado vs. academia-, mas é muito mais ambiciosa: aponta a trama para narrar sua decomposição, para pôr o sentido em suspenso. Aponta a linguagem para perfurá-la, para buscar esse lado de fora -o lado de fora da linguagem- que nunca chega, que sempre se posterga, se desagrega (literatura como forma de digressão) esse lado de fora, ou talvez esse dentro nalcançável: a metáfora do mergulho (a invenção de uma língua dentro da língua).
Não mais o mergulho como busca da palavra justa, bela, precisa (o coral iluminado no fundo do mar), mas o momento em que a caça submarina se extravia e se converte em chapa, ácido, vidro moído, coral de vidro moído (a exploração de um barco naufragado).

COMUNIDADE Esse lugar em que se escreve e se inscreve a literatura de esquerda, esse outro lugar, que não é a academia nem o mercado, não existe. Ou, melhor dizendo: existe, mas não é visível, nem nunca será. Instalado na pura negatividade, a visibilidade é seu atributo ausente. Fora do mercado, longe da academia, em outro mundo, no mundo do mergulho da linguagem, em seu balbuceio, institui-se uma comunidade imaginária, uma comunidade negativa, a comunidade inoperante da literatura.
Pensar no tema da comunidade, de estar em comum com a literatura, aqui e agora, é uma ideia desaconselhável: esse pensamento está ameaçado por terríveis tradições como o cristianismo (a comunhão), o socialismo real (o comunismo) e até o nazismo (a "volksgemeinschaft", a comunidade do povo). Um passo em falso e o pensamento é apanhado feito um mosquito por qualquer um desses abismos.
Para tanto, como é de supor, muito autores tomam esse caminho. De vez em quando, a sociologia volta a ele -sob o modesto título de "laço social"-, bem como certos estudos culturais, mas não passo disso. A filosofia desertou do assunto. Ainda assim, a literatura de esquerda não pode se pensar a partir de outro lugar que não seja essa comunidade negativa.

INACABAMENTO Mas eu não disse apenas comunidade. Evoquei a comunidade inoperante. Uma comunidade, sim, mas inoperante: uma comunidade em que o inacabamento é o princípio, mas tomado como termo ativo, designando não a insuficiência ou a falta, mas o trânsito ininterrupto das rupturas singulares.
Nessa linha, cada escritor inaugura uma comunidade. Mas esse gesto inaugural não funda nada, não acarreta nenhum estatuto, não administra nenhum intercâmbio; nenhuma história da comunidade se engendra ali. Inaugura-se como interrupção. Mas, ao mesmo tempo, a interrupção compromete a não anular seu gesto, a recomeçá-lo outra vez.
A comunidade invisível onde se escreve e se inscreve a "literatura de esquerda", a comunidade literária que se institui de maneira imaginária, pertence à tradição da doação; mas não da doação suposta como um intercâmbio de interesses, como a economia política das doações; nem a tradição vanguardista da doação como "potlatch", como liberador de energias reprimidas.

INTERRUPÇÃO A comunidade inoperante, tal como queria defini-la aqui e agora, vai mais além da lógica da vanguarda histórica: supõe a doação da literatura como uma interrupção, como a interrupção de seu próprio mito, como o questionamento recorrente de seu próprio desejo. O que a literatura vem a dar é sua própria inoperância, sua incapacidade para converter-se em mercadoria (como a produz o mercado) e sua resistência a transformar-se em obra (como supõe a academia). Escapa ao plano da eficiência e da plenitude (o campo do mercado), mas também se subtrai ao da codificação (a academia).
A comunidade inoperante supõe a instituição literária do futuro, entendido como demora, como suspenso, como passo adiante; sua existência não precisa de provas (como precisam o mercado e a academia: números, citações, colóquios, exemplos).
Nessa comunidade negativa, a leitura não se impõe sob o modo da distribuição (como no mercado) nem no da circulação (como na academia), mas como generalidade imaginária da particularidade. Exprime-se como indeterminação. Quem pertence à literatura da comunidade inoperante integra a comunidade dos que não têm comunidade.

FRATRIA E POLEMOS A comunidade inoperante, a comunidade da literatura de esquerda, se institui sob dois preceitos opostos, o combate sempre real entre duas ordens contraditórias: a "fratria" e o "polemos" (palavras gregas que deram origem a "fraternidade" e "polêmica", respectivamente). Combate sem resolução, claro, mas de forças que se imbricam uma com a outra, se unem. A "fratria" é indissociável do "polemos".
É certo que no mercado e na academia há polêmicas, entabulam-se discussões entre pares. Mas acontecem sob o modo da comunicação, estabelecem-se no espaço do público. A comunidade inoperante se subtrai de ambos os polos: rechaça o público e abomina o privado; funciona no ponto de fuga do futuro; suspende a argumentação, rechaça a comunicação, já que "fratria" e "polemos" andam juntas.
O pertencimento à "fratria" é imaginário; está composto pelos seres que pertencem à comunidade dos que não têm comunidade; nenhuma fala universal toma sua voz; pelo contrário, expressa a fala da multiplicidade de solidões; estabelece o "polemos" como sua forma de ser no outro mundo; daí que não lhe interesse ganhar discussões (nega a noção de vitória), mas apenas de fazer a entrega da doação do indeterminado, o dom da literatura.

AVANÇO CONSERVADOR A literatura de esquerda não busca ser reconhecida, mas posta em questão. Mas, enquanto isso, o pior aconteceu: a literatura argentina contemporânea continua com sua política do café com leite, como se nada tivesse acontecido, nem sequer um registro de seu fracasso.
A volta ao café com leite não é um retrocesso, porque a literatura, assim como a história, não retrocede. Pelo contrário: é um avanço. Um avanço do discurso conservador, dos valores mais convencionais, das ideias mais requentadas, das estratégias mais calculadas, dos riscos menos tomados.
E, obviamente, a maioria dos escritores do café com leite pertencem à esquerda política, são próximos ao progressismo; esses escritores questionam a política neoliberal dos anos 90 sem questionar (pelo contrário: tiram proveito) o substrato em que se basearam: a ideia de sucesso no mercado, a midiatização, as fórmulas publicitárias, os posicionamentos de imagem corporativa.
Em troca, é preciso pensar a literatura de outro modo, a partir de outro lugar, a partir de um sem lugar. Esse sem lugar é o espaço da literatura de esquerda. A partir desse sem lugar, fala o escritor sem público.



quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Trecho de estimação

Marina equilibrava-se sobre um pequeno banco. Era, indiscutivelmente, uma mulher belíssima, perturbadora. O gauche a dizia uma mistura de Rita Hayworth e Emmanuelle Béart. A pele muito branca contrastava com os cabelos levemente ruivos. O coque desleixado deixava à mostra o símbolo celta, um triskle tribal azulado. Sardas cercavam a tatuagem, descendo do pescoço até o meio das costas. Ali, o corpo fazia uma primeira curva, muito suave, que se acentuava perto do cóccix. Depois, a carne se alargava centrifugamente, formando uma bunda exata, tão perfeita que raramente passava impune pelas ruas.